quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Disfunção mínima da tireoide: o hipertireoidismo subclínico

Por diversas vezes são realizados exames de laboratório pelos mais diversos sintomas ou como parte de avaliação médica de rotina. Alguns exames podem apresentar alterações discretas, entre eles os hormônios da tireoide.
O hipertireoidismo subclínico é a disfunção mínima da tireoide caracterizada por níveis baixos de TSH e normais de T4 e T3 livres. É uma condição de diagnóstico laboratorial, já que apresenta sintomas vagos e inespecíficos, apesar de algumas pessoas referirem palpitações, ansiedade e calor excessivo, principalmente se o TSH estiver abaixo de 0,1 mU/L.
A estimativa atual é de que aproximadamente duas em cada 100 pessoas sejam acometidas pelo hipertireoidismo subclínico. Idosos e mulheres, com maior frequência.



Entre as principais causas de hipertireoidismo subclínico estão:
– uso excessivo de hormônio tireoidiano;
– bócio difuso tóxico (Doença de Graves);
– tireoidites.
Apesar de muita controvérsia, estudos sugerem que o hipertireoidismo subclínico esteja associado a arritmias cardíacas (principalmente à fibrilação atrial), aumento do risco de morte por problemas cardíacos em homens idosos e diminuição da massa óssea em mulheres após a menopausa. Contudo, o quanto o tratamento é capaz de ajudar nessas questões ainda é motivo de pesquisa.
O tratamento deve ser individualizado. Leva-se em consideração a causa do hipertireoidismo subclínico, a idade e o sexo do paciente, assim como os níveis de TSH. Por exemplo, para pacientes com mais de 65 anos e TSH menor que 0,1 mU/L recomenda-se tratamento devido ao risco de arritmias. Já pacientes jovens, com TSH entre 0,1 e 0,4 mU/L e assintomáticos, podem ser apenas acompanhados sem tratamento já que possuem chance de 50% de reverter espontaneamente o hipertireoidismo subclínico dentro de 5 anos.
Caso você tenha feito algum exame de tireoide e este tenha mostrado resultados alterados, procure um endocrinologista e faça uma avaliação. É importante para que se escolha a melhor abordagem terapêutica.


Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Terapia hormonal da mulher transgênero (transexualismo - male to female - MTF)

Para a boa compreensão deste texto, é importante a compreensão dos seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Após o diagnóstico apropriado da incongruência de gênero e discussão dos riscos e benefícios da tratamento, a mulher transgênero poderá iniciar a terapia hormonal com o endocrinologista. O tratamento consiste basicamente na supressão dos androgênios produzidos pelos testículos e reposição de estrogênio, com a pretensão de diminuir pelos no rosto, aumentar o tamanho das mamas e tornar os contornos do corpo mais femininos. Vamos entender, passo a passo, como funciona.
A reposição de estrogênios usualmente é feita através da administração de 17-beta-estradiol por via oral ou transdérmica. O 17-beta-estradiol é especialmente útil por permitir que os níveis no sangue sejam monitorados, além de apresentar menor risco de trombose quando comparado ao etinilestradiol (este, não recomendado). A reposição de estrogênio, além de ser responsável pelas mudanças corporais desejadas pela mulher transgênero, também é capaz de suprimir a produção de androgênios. A administração do 17-beta-estradiol sozinha já é capaz de inibir a produção das gonadotrofinas (LH e FSH), assim diminuindo a produção de testosterona pelos testículos. A paciente é monitorada regularmente para que os níveis de estradiol sejam mantidos abaixo de 200 pg/mL e de testosterona, abaixo de 55 ng/dL. Em grande parte dos casos, além do uso de estrogênios, também são usados medicamentos para inibir a secreção ou a ação dos androgênios.
Para "combater" os androgênios, cujo principal é a testosterona, temos à disposição como primeira linha de tratamento a espironolactona e a ciproterona. A espironolactona é um antagonista do receptor mineralocorticoide que apresenta efeitos de inibição competitiva do receptor androgênico além de inibir a esteroidogênese testicular, ou seja, é capaz de bloquear tanto a produção quanto a ação da testosterona. Já a ciproterona tem efeito de suprimir a produção de gonadotrofinas, devido ao seu efeito progestágeno, além de bloquear a ação dos androgênios. Como segunda linha, temos os agonistas do GnRH, medicamentos injetáveis e de alto custo, que inibem a produção do FSH/LH e consequentemente de testosterona. Estas modalidades de tratamento podem ser usadas enquanto a paciente ainda tiver os testículos.
Os efeitos esperados da terapia hormonal da mulher transgênero são:
Pelos (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo a partir de 3 anos): alguns pelos como os da barba podem ser resistentes à terapia hormonal, necessitando do uso de medidas complementares como o laser.
Mamas (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 2 a 3 anos): Pode haver sensibilidade durante o desenvolvimento mamário. A adequada inibição dos androgênios potencializa o efeito do 17-beta-estradiol. As pacientes precisam participar de exames de rastreamento de câncer de mama como qualquer mulher.
Pele (início do efeito em 3 a 6 meses): Com a tratamento a pele costuma ficar menos oleosa e mais macia. Em alguns caso, pode ficar seca e as unhas podem ficar quebradiças.
Composição corporal (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 1 a 3 anos): É esperada uma redução no volume e na força muscular com acúmulo de gordura nos quadris, tornando as medidas corporais mais femininas.
Voz (não muda): A voz não muda com o tratamento. A paciente é aconselhada a fazer terapia da fala com fonoaudiólogo.
Testículos e próstata (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo com muitos anos): O tratamento leva a atrofia progressiva dos testículos e redução do volume da próstata. Logo, pacientes que desejem manter a fertilidade devem ser devidamente aconselhados antes do início do tratamento. Paciente que permanecem com a próstata também devem fazer exames periódicos de prevenção como qualquer paciente do sexo masculino.
Função sexual (início do efeito em 1 a 3 meses - efeito máximo em 3 a 6 meses): A terapia hormonal da mulher transgênero leva a redução da libido, das ereções e da ejaculação em graus variados. Algumas pacientes, que desejam manter a função sexual, precisam ter as doses da terapia ajustadas. Nas pacientes que fazem cirurgia genital, a função sexual é variável e dependente da função sexual antes do procedimento, do tipo da cirurgia realizada e dos níveis hormonais.
Por fim, o acompanhamento regular com endocrinologista familiarizado com este tipo de tratamento deve ser frequente e regular para que se evite consequências tanto do excesso ou quanto da deficiência hormonal, tais como: problemas na libido, fragilidade óssea, aumento no risco de trombose ou mesmo de câncer.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Avaliação clínica inicial do paciente transgênero (transexual)

Para a boa compreensão deste texto, primeiramente precisamos estar familiarizados com os seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Diferentes estudos sugerem que entre 0,3 e 0,8 por cento da população seja transgênera. A maioria destas pessoas procura assistência médica e psicológica no início da vida adulta ou na adolescência, apesar de muitos referirem desconforto mesmo antes da puberdade. Hoje, com maior exposição na mídia, maior aceitação social e maior acesso à assistência, os indivíduos transgênero tendem a buscar mais cedo os serviços de saúde. Algumas vezes são procurados os serviços de saúde mental pelo sofrimento psicológico causado pela incongruência de gênero. Outras vezes, o endocrinologista é procurado para prescrição hormonal. No entanto, a abordagem do paciente transgênero é multidisciplinar.
Embora muitos pacientes transgênero sejam de fácil identificação, outros podem ter o diagnóstico dificultado por problemas de saúde mental concomitantes. Logo, a disforia ou incongruência de gênero deve ser diagnosticada por profissional da saúde qualificado e experiente, geralmente da área de saúde mental (psiquiatra). Alguns pacientes, por receio de sofrerem rejeição por parte do profissional de saúde ou por ansiedade em querer começar rapidamente o tratamento, acabam pulando esta etapa, o que não é aconselhável. Neste momento, além do diagnóstico preciso, o paciente transgênero conhece os riscos e benefícios da terapia, bem como apresenta suas expectativas. Quando estas expectativas são pouco realistas, precisam ser trabalhadas. O contato com outros pacientes transgênero é útil em esclarecer dúvidas quanto a problemas pessoais e sociais que poderão surgir. O suporte da família e dos amigos também é importante.
As mudanças físicas induzidas pelo tratamento não são iguais em todos os pacientes, ou seja, depende da biologia de cada pessoa. Algumas mudanças podem aparecer rapidamente, outras demoram mais tempo e podem não ser completas. Estas transformações são difíceis de prever e podem não se correlacionar perfeitamente com a reposição hormonal. Logo, o paciente deve estar preparado para monitorização frequente e assimilação progressiva das alterações no seu dia a dia.
O tratamento do paciente transgênero pode levar à perda da fertilidade. Por isso, questões relacionadas a filhos e constituição de família devem ser discutidas.
Por fim, a individualização é muito importante. Enquanto alguns pacientes preocupam-se apenas com traços do rosto, com pelos e mamas, outros podem preocupar-se com a mudança da genitália. O tratamento individualizado visa garantir bem estar físico, psicológico e sexual, ou seja, qualidade de vida e satisfação ao paciente.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management - UpToDate OnLine.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

domingo, 6 de novembro de 2016

Refrigerante, o novo cigarro

Nossa! Quanto exagero comparar refrigerantes, ou mesmo outras bebidas açucaradas, ao cigarro. Será mesmo? Vamos entender o porquê desta comparação “maluca”...
Neste ano de 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou aumentar os impostos sobre refrigerantes e outras bebidas doces em pelo menos 20 por cento. Prontamente, o governo do Reino Unido anunciou aumento de impostos para os refrigerantes a partir de 2017. Como bons brasileiros, sempre temos um pé atrás com aumento de tributos. Mas a Universidade de Oxford fez uma análise estatística do impacto desta medida para os ingleses: o aumento de 20% no preço, levaria a redução na ingestão de açúcar (sim, refrigerantes contêm muito açúcar) de 15%. Esta pequena diminuição no consumo já seria capaz de prevenir que 180 mil pessoas se tornassem obesas em 1 ano! Sem falar num número ainda maior de pessoas que deixariam de engordar (1).



Se o problema se restringisse apenas ao peso... mas diferentes estudos associam o consumo excessivo de açúcar ao aumento na incidência de diabetes mellitus, mesmo em pessoas com peso normal. Além disso, independentemente do índice de massa corporal e do grau de atividade física, quem consome mais açúcar corre um risco maior de morrer de doenças cardíacas e vasculares (2).
Mas se o problema é o açúcar, por que culpar só os refrigerantes? Por dois motivos muito importantes: 1- os refrigerantes são responsáveis por cerca de 1/3 de todo o açúcar consumido. 2- a indústria destas bebidas tenta de toda forma esconder o quanto o “refri” faz mal à sua saúde.
Desde que os primeiros estudos correlacionando o fumo ao câncer de pulmão foram publicados, demorou cerca de 50 anos até que políticas públicas de restrição de consumo fossem plenamente implementadas. No início, a indústria do tabaco esperneou negando a associação do seu produto com doenças, lançando dúvidas para confundir o público e, pior, comprando a lealdade de cientistas e políticos corruptos. Apesar disso, nas últimas 3 décadas, a redução do tabagismo preveniu muitas mortes por câncer e doenças cardiovasculares.
A indústria do refrigerante não fez diferente: tentou associar a epidemia de obesidade, diabetes e doenças vasculares ao consumo de gordura e à inatividade física, isentando o açúcar. Nesse processo, cientistas e políticos também foram corrompidos. Por fim, esta indústria está lavando as mãos e dizendo que a responsabilidade por optar pelo produto pouco saudável é sua, o consumidor!
A verdade é que a briga está apenas começando... Assim como no combate ao fumo, além de impostos mais altos, as bebidas doces (refrigerantes, sucos processados, néctares, isotônicos, etc) precisam ter a publicidade devidamente regulada e serem desvinculadas de atividades saudáveis como esportes. Isso salvou vidas no passado e vai salvar mais vidas no futuro. Se o refrigerante realmente é o novo cigarro, vamos começar a tratá-lo desta forma!

Fontes:
1- Briggs ADM, Mytton OT, Kehlbacher A, et al. Overall and income specific effect on prevalence of overweight and obesity of 20% sugar sweetened drink tax in UK: econometric and comparative risk assessment modelling study. BMJ. 2013;347:f6189. 
2- Yang Q, Zhang Z, Gregg EW, Flanders WD, Merritt R, Hu FB. Added sugar intake and cardiovascular diseases mortality among US adults. JAMA Intern Med. 2014;174:516-524. 
3- Aseem Malhotra. Sugar Is the New Tobacco, so Let's Treat It That Way. Medscape Public Health.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576